Sempre interpretei esta famosa frase do escritor russo, Liev Tolstoi, “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”, da seguinte forma:
Se você quer conhecer bem todas as aldeias do mundo, caro leitor, primeiro conheça bem a sua; neste caso, a pintando em um quadro.
Ou seja: se você conhecer a fundo a aldeia onde mora, você terá parâmetros confiáveis para, quem sabe, conhecer a fundo outras aldeias do mundo – e, quiçá, do universo.
Esse talvez seja um dos motivos que me levaram a estar sempre pintando – como sugeriu o escritor russo – o bairro onde hoje moro, a Liberdade, em São Paulo.
Não há como negar que suas ruas e moradores me inspiraram a escrever várias de minhas crônicas. E, como não poderia ser de outra forma, quase todas são relacionadas à cultura que o marcou durante todo o século passado, a cultura Nikkei.
E nesta crônica aproveitarei para embeber de tinta meu pincel e listar, utilizando-me de cores fortes, o que para mim – depois de mais de oito anos vivendo aqui – mais caracteriza o bairro:
A primeira imagem que me vem à mente – e à de qualquer um que já esteve na Liberdade – são as dos postes vermelhos enfileirados nas ruas que circundam sua praça central. Não há fotógrafo que não os utilize para enquadrar a população que vive e circula por aqui.
Em seguida me vem a famosa Feira da Liberdade: uma das principais atrações turísticas da gigantesca São Paulo.
Tem também as várias lojinhas e restaurantes japoneses que fazem do comércio local um verdadeiro parque de diversões para apreciadores da cultura.
Mas, apesar de todos esses exemplos, o que mais representa o bairro, para mim, é algo que vejo cada vez menos transitando nas ruas da região: os isseis.
Para quem não sabe, os isseis, são os senhores e as senhoras japoneses que, no começo do século passado, vieram do Japão para viverem aqui no Brasil – e/ou em outros países da América.
São essas as pessoas que deram à Liberdade a fama que ela tem – até então –, a de ser a maior comunidade japonesa do mundo fora do Japão.
Sempre que vejo um desses senhores, bem velhinhos, numa feirinha de hortifrúti – local onde mais se encontra isseis por aqui –, carregando sua sacola de pano, puída e listrada, cheia de legumes e verduras, não tenho dúvida, vejo nele o maior ícone do bairro.
E têm também as senhoras isseis, bem velhinhas, puxando um carrinho de feira carregado de frutas e legumes, e com algumas sacolinhas de plástico, também carregadas de frutas e legumes, amarradas na parte externa do carrinho.
Mas, pelo andar da carruagem, essa história está chegando ao fim.
A cada ano que passa, a Liberdade é reconhecida cada vez menos como sendo o bairro japonês de São Paulo. Com a recente imigração de chineses e de coreanos para o Brasil, a Liberdade está passando a se tornar o bairro oriental de São Paulo.
E não só por isso. Na última contagem feita pelo IBGE contabilizou-se mais descendentes de japoneses morando nos bairros Saúde e Vila Mariana – bairros também paulistanos – do que na própria Liberdade.
Assim testemunhamos hoje a Liberdade “japonesa” diminuir cada vez mais. Tanto que é até difícil vermos isseis, nisseis e sanseis (japoneses, filhos e netos de japoneses) trabalhando em lojas e em restaurantes daqui.
Enfim: com o rolar da história, o bairro está se diversificando. Mudando algumas de suas características. Inclusive essa, que o representou durante tantas e tantas décadas.
São coisas que acontecem em nossa aldeia. São coisas que acontecem nas aldeias do mundo inteiro.
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