Confira como foi o bate-papo com a professoa Chika Kinoshita, na Cinemateca
No último dia 7 de março, véspera do Dia Internacional da Mulher, a Fundação Japão e Cinemateca Brasileira promoveram o evento “A participação feminina no universo do cinema japonês“. Foi uma rara oportunidade de conhecer em detalhes o papel feminino tanto no cinema quanto na sociedade japonesa ao longo dos anos, por meio de uma grande estudiosa do cinema japonês, Chika Kinoshita, da Universidade de Quioto
A professora Kinoshita é uma das principais pesquisadoras do cinema japonês e de gênero e sexualidade na cinematografia daquele país, além de especialista na obra do cineasta Kenji Mizoguchi. Com tradução consecutiva, falou sobre a presença da mulher não apenas nas tramas, mas também na direção e na produção de filmes ao longo da história do cinema japonês.
Entre as principais representantes japonesas, o evento começou falando de Tazuko Sakane, considerada pioneira no Japão, e Kinuyo Tanaka, que começou atuando antes de tornar-se diretora.
“Tazuko Sakane começou sua carreira como assistente, para então ter seu próprio trabalho. Seu primeiro longa, Hatsu Sugata (1936), não teve boa aceitação da crítica, nem do público. Ela passou, então, a trabalhar em documentários de curta-metragem, até que, mais tarde, acabou voltando a trabalhar como continuísta. O fato de não ter seguido a carreira de diretora a deixou muito frustrada”, conta a professora.
Também foram destacadas as roteiristas Ayame Mizushima, Noriko Suzuki, Yoko Mizuki, Sumie Tanaka e Natto Wada.
“No Japão, a trajetória destas mulheres foi muito difícil. Na sociedade japonesa, as mulheres tinham um papel inferior ao que deveriam ter. Não havia oportunidade de trabalhar neste segmento. Somente no período pós-guerra a situação começou a melhorar e já era permitido às mulheres atuar como roteiristas”.
As mulheres na indústria cinematográfica
Desde antes da guerra, continuando no pós-guerra, roteiristas mulheres foram bastante reconhecidas, como Yoko Mizuki e Sumie. Esta época, por volta de 1950, foi conhecida como a época de ouro, explica a professora.
Para as posições de direção, no entanto, o caminho ainda era muito restrito, especialmente para filmes comerciais.
“No Japão, tradicionalmente as produtoras faziam a produção, a edição e também eram responsáveis pela exibição dos filmes. Esta era a linha tradicional japonesa, com controle total de todo o processo. Assim, nos filmes comerciais, nos longas-metragens, quase não havia a presença de mulheres. Isso porque, neste sistema, para ser diretor, primeiro o interessado deveria ser recrutada como assistente de direção. Depois de vários anos atuando nesta função, era possível tornar-se diretor. No entanto, o perfil para recrutamento de assistentes de direção restringia a candidatos homens, com formação superior. Assim, as mulheres eram cortadas”.
Nesta época, as mulheres encontravam caminho aberto apenas na realização de documentários. E por incrível que pareça, também nos filmes voltados para o público masculino havia possibilidade de trabalho para as diretoras ou produtoras. Foi nesse nicho, por meio de produtoras menores e independentes, que se abriu o caminho para as mulheres.
“A partir da década de 1970, houve uma quebra nesse sistema. Os equipamentos começaram a ficar mais acessíveis a todas as pessoas e tornou-se possível fazer a produção de filmes de 8 mm do próprio bolso. As mulheres passaram então a fazer os seus próprios filmes, conseguindo reconhecimento”.
Este foi o caminho encontrado por Naomi Kawase, que começou com filmes experimentais, curtas-metragens, para então passar para os longas. Desta forma, ela conseguiu um amadurecimento do seu trabalho, explicou a professora Kinoshita.
Desta época, até a década de 1980, houve uma nova quebra no sistema, em grande parte pelo crescimento do feminismo em todo o mundo. Ainda havia um sexismo muito forte, com discriminação muito aparente, como existe ainda hoje, destacou a professora Kinoshita.
O Japão de hoje
Atualmente, um dos principais nomes femininos atuando na direção do cinema japonês é o de Miwa Nishikawa, que começou sua carreira como assistente do diretor Hirokazu Koreeda.
“Miwa Nishikawa vem apresentando uma constância de reconhecimento muito estável, tanto na crítica como do público. Nishikawa, no entanto, não se prende a temas feministas, como fazia Naomi Kawase”, explica a professora Kinoshita.
A diretora é responsável por sucessos do cinema, como Wild Berries (2003), Sway (2006),Dear Doctor (2009) e Dreams for Sale (2012).
Embora ela não siga a linha do feminismo, de destacar a mulher como uma pessoa independente, com uma vida maravilhosa, ela utiliza outros artifícios que têm caído no gosto do público feminino.
O filme Sway, por exemplo, traz o ator Joe Odagiri, um galã no Japão, como protagonista. Ao utilizar o sex appeal do ator, Nishikawa agradou muito o público feminino, que lotou as salas de cinema na época de sua estreia.
Seus filmes também trazem frequentemente personagens complexas, cheias de artimanhas, por vezes até mesmo maliciosas, revelando a força e a capacidade das mulheres de conseguir o que desejam.
Ao final, a professora deixou no ar um questionamento sobre a diretora Miwa Nishikawa. “Será que ela não trabalha o feminismo como uma crítica, ou até mesmo um certo cinismo, para esfregar isso ao mundo masculino?”.
O feminismo no Japão e no Brasil
Ao final do bate-papo, Olga Futemma, Coordenadora Geral da Cinemateca Brasileira, agradeceu o generoso panorama apresentado pela professora japonesa, e destacou a importância de eventos deste tipo.
“São Paulo já teve quatro salas dedicadas ao cinema japonês, e este foi um dos principais canais para que as pessoas da minha geração se aproximassem da cultura japonesa. A abordagem da cultura japonesa através do cinema é uma linguagem poderosa, que faz muita falta. Hoje, os filmes japoneses estão confinados a festivais, e é muito pouco, pois estamos vendo aqui que existe uma produção inteligente, provocadora”, ressaltou a Coordenadora, explicando que a circulação maior de filmes japoneses seria muito importante para a renovação das referências que temos sobre o Japão e sobre o cinema japonês.
Também em sua fala final, Olga destacou as semelhanças da história das mulheres no cinema japonês com a realidade vivida no Brasil e no mundo.
“O cinema não está desgarrado do que acontece fora das telas. Me surpreendo que, em pleno século 21, ainda estejamos com alguns slogans, do tipo salário igual para trabalho igual. É inacreditável que ainda vivamos nesta situação. Sem falar na questão do assédio. Para mim, é um fracasso, mas a luta continua”.
Após o debate, foi exibido o clássico Fim de verão (Kohayagawa-ke no aki, 小早川 家 の 秋), penúltimo filme dirigido por Yasujiro Ozu, em cópia 16mm, com legendas em português.
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